- Há algo de especial em vocês que sobreviveram às valquírias... - ela disse para Sérgio, que abriu um largo sorriso.
- Você ia perceber isso inevitavelmente, mulher. Todas percebem.
- Mesmo com esse comportamento estúpido, podemos usar bem os poderes de vocês...
- Mas quem são vocês? - Quis saber Rufus retornando.
- Nós somos piratas do plano astral...
- Piratas?!? - Animou-se Rufus puxando um tapa-olho... - Onde está o monge com o rum?
- Sim... somos desgarrados do nosso povo que é controlado por uma rainha morta-viva secular. Comandamos os verdadeiros poderes mágicos.. aqueles que vem de nós mesmos.. de nossas mentes...
- Poderes psiônicos... - completou Sérgio. - Você é uma githyanki...
- E em que podemos ser úteis para piratas? - Questionou Ohterrível.
- De você, jovem dragão, queremos todo o seu ouro, gemas e itens de valor... - respondeu a mulher com um sorriso que enfatizava a ganância.
- Negócio fechado! - Retrucou o dragão prontamente, que só depois frustrou a mulher ao revelar não ter mais do que 18 moedas de bronze, mesmo sendo um dragão.
- E de nós? - Perguntou Rufus.
- Nós queremos as almas de vocês...
- Porra, tudo é alma agora? E pra que almas?
- Almas são comodites muito valorizadas no mercado... - insistiu a mulher. - Se quiserem estar conosco esse é o preço.
- Nada feito - refutou Rufus.
- Eu aceito... - disse Sérgio. - Mas se somos especiais como você está falando.. eu quero que pela minha alma, eu e o hobbit possamos ser piratas do plano astral!
- Está bem... - concordou a mulher sacando um rubi e sugando a alma do bardo para ela, enquanto a boca de Ohterrível salivava.
Ainda que aquele pontilhado do que fora a Torre Central de Halarah, também chamada de Torre da Ciência Absoluta, flutuasse diante deles, Derdeil Óphodda e Mari'bel perceberam o grande alçapão no chão, similar àquele que encontraram sob as ruínas do templo da Adama. A fada da Grande Floresta usou toda a sua força, mas logo percebeu que precisaria de muito mais. Derdeil sugeriu que usasse uma alavanca, algo como uma espada, que a magia do netyarca Procópio Excelsior terminaria o serviço. E assim foi. Tão logo o alçapão se moveu, a magia se encarregou de puxá-lo para o alto, fazendo-o ficar perpendicular à passagem.
- Irei buscar um pedregulho para garantir que não vai fechar depois que passarmos... - disse Mari'bel.
Derdeil, no entanto, percebeu que o arquimago não se dirigira a eles, mas sim voara para o que seria o segundo andar da torre. Bastou um pensamento para que seu familiar, o corvo Edgar voasse também para averiguar e visse com clareza, Excelsior se dirigir para um baú. Nele havia o brasão de um grande Z, além de ser a única coisa intacta no ambiente. Havia fragmentos e fuligem dos outros móveis, mas todos destruídos. Apenas o baú parecia ter se salvado do ocaso da torre.
Mari'bel tentou arrancar uma das enormes pedras que flutuavam conformando o espectro da torre, mas elas simplesmente não se moviam por mais força que fizesse.
- Terei de ir lá fora... tudo aqui está preso no lugar... - gritou a fada para Derdeil.
- Edgar, encontre algo que impeça o alçapão de fechar..
- Sim, mestre... - disse o pássaro preto redirecionando sua atenção.
- Ó nobre netyarca Excelsior... o que há aí em cima? - Indagou Derdeil, que já percebera que a magia era muito mais do que uma reversão de gravidade. Se tratava de um efeito épico com toda a certeza.
- Algo que pode nos guiar nessa jornada... - limitou-se a responder o arquimago, que usou de uma magia para estuporar o baú,
Como Mari'bel logo encontrou uma pedra grande o suficiente, Edgar aproveitou para retornar e observar o que fazia o netyarca. Porém, o familiar apenas viu que ele guardara tudo em uma pequena bolsa mágica.
- Diga.. diga.. o que há aí Procópio? - Falou o pássaro. - Vejo que você continua sem um familiar...
- Saia daqui sua ave agourenta... - repeliu-o Excelsior enquanto levitava em direção a escadaria onde Derdeil e Mari'bel já aguardavam. - Para que isso? - Disse se referindo à pedra que a fada posicionara.
- É para garantir se algo der errado lá embaixo... - ela respondeu.
- Caso a magia falte por um instante... - acrescentou o escolhido do deus da magia se referindo a área de magia selvagem.
- Isso não é um problema pra mim... - gabou-se o netyarca Excelsior no justo momento em que a magia parou de funcionar. Tudo começou a ruir e o alçapão desceu pesadamente sendo seguro pela pedra. Derdeil Óphodda, Mari'bel e Edgar desviaram dos escombros que caíam, mas o arquimago foi atingido e caiu no chão.
- É agora, mestre... nossa chance!!! - Gritou Edgar na mente de seu senhor.
Em um instante, entretanto, a magia voltou. Bastou a Excelsior se concentrar para interromper a queda e tudo voltar ao seu lugar. Ele apoiou-se no cajado para se levantar.
- Algo assim... - disse Mari'bel enquanto começavam a descer.
A escadaria era antiga, mas a guardiã de Timothy Hunter percebia rastros de alguns dias atrás da mesma forma que antes. Não eram os mesmos rastros, mas eram humanos com cajados em sua maioria, com idade mais avançada. . Edgar adiantou-se e deparou-se com um aposento grande, onde haviam treze estátuas grandes e similares às que os haviam atacado anteriormente. Bastou ele adentrar o aposento para os golens de pedra tentarem alcança-lo, obrigando-o a recuar.
- Há muito razão e sabedoria em suas ações... - disse Excelsior, enquanto Derdeil usava seus poderes e conhecimento de clérigo para curá-lo. - Além de um arcano, é também um manipulador de poder divino. Ainda que o verdadeiro poder esteja com os arquimagos, há poder nos lacaios que manipulam o que é mastigado pelos deuses. Você é um teurgísta místico?
- Sim... - disse Derdeil. - Não me furto a nenhuma forma de servir ao grande Rhange Hesysthance, senhor da magia. Afinal de contas, todo mago só manipula a magia pela graça do Altíssimo.
- Isso certamente pode ser um benefício para a reconstrução de Halruaa... - continuou Excelsior. - Você deveria ser posto como um dos elderes. Precisamos de conselheiros com sua capacidade, Óphodda.
- Seria uma honra, nobre nethyarca.. - disse Derdeil vendo que o velho buscou a bolsa e tirou um amuleto com a mesma insígnia em Z do baú.
- Isso irá garantir a passagem... servirá para lidar com as estátuas!
- Edgar!!! - Disse Óphodda chamando seu familiar e entregando o amuleto. Porém, assim que o amuleto foi ativado, as estátuas cresceram, ficaram mais ameaçadoras e seus olhos emitiram um sinistro brilho vermelho. Nesse momento, o nethyarca Procópio Excelsior se teleportou para longe dali. O corvo recuou, mas isso não deteve as estátuas que seguiram avançando. Mari'bel tentou tirar Derdeil dali, mas o mago pediu que esperasse.
Usando seus poderes de escolhido da magia, Óphodda invocou uma porta dimensional que deveria levá-lo para a porta do outro lado do aposento. A magia selvagem que cobria Halarah afetou a conjuração e ele conseguiu colocá-los do lado de cá da porta, ainda fechada, à mercê dos inimigos. Edgar tetou abrir a fechadura com seus talentos ladinos, enfiando seu bico pela fechadura arcaica. Ele conseguiu destravá-la, mas viu um efeito de transmutação acertá-lo. Onde antes havia o corvo, estava agora um escamoso kobold.
As estátuas tornaram a avançar. Mari'bel despejou ataques de oportunismo com flechas capazes de emaranhar os golens por alguns segundos. Os três primeiros foram assim contidos, mas o quarto lançou-se sobre ela, que conseguiu desviar-se, vendo o inimigo afundar a mão na parede de pedra onde ficou preso. O quinto, por sua vez, acertou-a com um golpe firme fazendo-a sentir o peso da ameaça.
Derdeil resolveu livrar-se da armadilha mágica com um dissipar magia. Dessa vez, a magia selvagem engrandeceu o efeito ao ponto de desligar não só a armadilha mágica, mas até mesmo os golens, além de outros efeitos e itens mágicos. Mas não devolveu Edgar à sua antiga forma, o que deixou claro que o efeito era permanente. Ainda assim, ele abriu a porta com mais facilidade agora que tinha mãos.
Eles passaram a outro corredor com uma escada descendo e ao fim, outra porta.
Rufus Lightfoot e Sérgio Reis, marujos piratas do plano astral seguiam com seu bando agora. A mulher havia teleportado-os com seus poderes psiônicos até o restante do grupo, quatro outros machos da espécie dela, liderados por um capitão chamado de Capitão Uber. Além destes, haviam cinco outros cujas feições se escondiam sob mantos como o de monges reclusos. Nem mesmo enfiando a cara abaixo deles, Rufus conseguiu perceber algo de seus rostos.
- Isso aqui tá muito estranho... - disse o hobbit-aranha.
- Você ainda não viu nada... - alertou o Capitão Uber em sua mente.
Haviam viajado por horas, que pareciam dias, ou talvez fossem semanas, não conseguiam ter noção de nada ao certo até avistarem o lugar para onde se dirigiam, ou melhor, o não-lugar como fora chamado pelos githyankis.
- Não-lugar? Mas o que couves-de-bruzelas é um não lugar? - Questionou Rufus.
- É um lugar que não existe em si, mas na congruência limítrofe entre os lugares. Um ponto escanteado entre os nodais da existência... - disse a estranha mulher.
- Ah,.. não entendi.. - insistiu o ladino.
- É como se fosse um cantinho esquecido de vários planos... - avaliou Ohterrível.
- Uma vez lá, vocês não devem falar com ninguém. Entenderam? Qualquer um com quem falarem terá poder sobre vocês! - Comandou Uber. Rufus e Ohterrível concordaram.
- Pode deixar, patrão. Não falar é comigo mesmo... - disse o Sérgio Reis, que estava muito pálido desde que perdera a alma.
Diante deles havia uma colossal rocha flutuante como uma parte de uma montanha. No entanto, não estava presa ou ancorada a nada. Também não se via rocha nua que fosse, pois sobre tudo haviam barracos e construções precárias de no máximo dois pavimentos, muitas das quais escoradas umas nas outras. Tudo era caótico e desordenado, sem ruas ou avenidas. Também não haviam praças e jardins, mas apenas uma contínua favela conjugada.
Eles se dirigiram diretamente para uma taverna, que era a maior construção naquela ilha surreal. Ao entrarem, o lugar estava repleto de githyankis que lutava, jogavam, bebiam e consumiam toxinas. A maioria do que se passava ali era ininteligível para Rufus, Sérgio e o dragão. Mesmo assim, o bardo sacou seu berrante e tocou anunciando:
- Eu sou Sérgio Reis, o cãozinho do berrante...
- Cale-se, seu imbecil! - Disse a estranha mulher dando-lhe um tapa.
O Capitão Uber parecia ser o próximo a punir Sérgio Reis, mas antes disso, alguém naquela multidão o convocou:
- Aí está você, Uber. Como foi sua jornada e que homenagens tem para me oferecer?
- Nossa viagem foi bem aventurada, grande Haplika Tyvo. Encontramos um plano material que se aproxima do fim e cujas energias podemos canalizar para nosso objetivo.
- Um plano material? - O sujeito que parecia uma espécie de senhor daquele lugar se ergueu já deixando a raiva aparente.
- Si.. sim... sim, barão. Este humano nos garantiu que seu mundo está perto de fim, não é Reis?
- Ah sim.. pertíssimo... tudo culpa dos elfos, sabe.. - começou a tagarelar Sérgio Reis. - Sabe como são esses elfos com esses títulos de nobreza idiotas, picuinhas familiares e perspectivas pequenas. Estão acabando com tudo... todo elfo é corrupto e ladrão. E o que merecem os ladrões? Serem punidos... todos... sem exceção...
- Cale-se.. - silenciou-o a estranha mulher githyanki.
- Nós precisamos de pelos menos dez planos! - Exaltou-se o barão Haplika Tyvo. - EU MANDEI VOCÊ ENCONTRAR DEZ PLANOS!! E VOCÊ ME VOLTA COM UM?!?
Enquanto ele ia falando, o Capião Uber começou a flutuar e engasgar como se uma mão invisível apertasse sua traqueia. Ele se contorcia como se estivesse prestes a morrer.
- Eu... irei... conseguir... - Uber gemeu.
- Essa é sua última chance! - Tyvo o soltou e logo o burburinho substituiu o silêncio que o encontro gerara.
Os piratas do plano astral se apressaram em deixar o lugar.
A alma de Kaliandra Boaventura viu-se não mais na imensidão enevoada do plano astral, mas em uma planície apinhada de criaturas. Era difícil entender alguma coisa no caos de seres em que surgiu. Haviam muitos humanos, mas também alguns hobbits. Os humanos corriam e tentavam se refugiar, ao mesmo tempo em que cantavam preces para Chauntea:
- Debulhar o trigo... recolher cada bago do trigo... forjar no trigo o milagre do pão...
Os hobbits tentavam escapar por baixo no chão duro e cinzento, enquanto clamavam por Yondalla:
- Início está atrás, o mundo à frente... há muitos caminhos a trilhar... através de sombra, para a borda da noite... até que as estrelas estão todas acesas...
Em meio ao turbilhão, Kaliandra percebeu a centena de demônios que voavam acima de sua cabeça. Um deles desceu em carga e agarrou a alma que estava ao lado dela. O pobre servo de Chauntea gritou em agonia, enquanto era absorvido pelo monstro.
Estava nas Planícies Cinzentas, tinha certeza, mas não havia sinal de nenhum deus que fosse resgatando as almas de seus fiéis. Apenas demônios ceifando almas. Ela pensava sobre o que devia fazer, mas antes que pudesse reagir, um vrock a agarrou e a carregou para o alto. A trovadora da espada lutou para se libertar, mas o demônio urubuzento já começava a absorvê-la. Ele só foi detido porque de uma rasgo no espaço-tempo surgiu uma magnífica mulher pronta para a batalha. A valquíria decepou a cabeça do vrock com um só golpe e tomou Kaliandra para si.
Em um piscar de olhos, as duas estavam em um amplo salão. Todo o espaço central era ocupado por uma enorme mesa de madeira rústica sobre a qual haviam incontáveis pratos e bebida. Muitas mulheres celebravam e cantavam ao redor da mesa. Nas paredes, expostos como troféus, haviam infindáveis cabeças de animais, humanoides e outros seres.
- Quem é você? - Disse a valquíria para a alma nua de Kaliandra.
- Eu sou Kaliandra Boaventu... - antes que a elfa terminasse, a mão direita da ceifadora de almas já calara sua voz com um golpe esmagador no maxilar. Veio outro na boca do estômago e um terceiro como um martelo que a jogou no chão.
- Não existe mais Kaliandra! Você é uma valquíria!!
Kaliandra lutou contra dor e tentou se levantar, pensando que o vrock não parecia tão ruim agora.
- Qual é sua missão? - Insistiu a valquíria.
- Eu devo salvar meu mundo e... - um chute da valquíria acertou Kaliandra no peito e jogou-a contra a parede como se fosse uma boneca.
- Sua missão é a missão das valquírias! Nada mais. Você que ama Derdeil Óphodda deve aceitar as verdades e não mais lutar contra elas. Você precisa, porém, pagar o preço de sua iniciação! Deve provar que merece ser uma de nós!
- E... o.. que.. devo... fazer? - Gemeu Kaliandra.
- Para se tornar um espírito da vingança, você deve buscar a alma de Shei Long, cuja existência marcou a sua e pede pagamento em sangue por seus crimes. Traga a alma dele após ceifar sua vida e sua alma ascenderá novamente a Valhala. Fracasse e nada restará de sua existência em lugar algum do multiverso.
- Assim farei... - Kaliandra ajoelhou-se. De repente, seus cabelos se tornaram prateados, assim como uma armadura de placas e uma grande espada surgiram sobre seu corpo. - Obrigado, senhora.. - a elfa disse erguendo os olhos, mas viu que já estava em um lugar inóspito enevoado. De volta ao plano astral. Ao longe, ouviu uma discussão:
- Sua estupidez poderia ter custado nossa existência! - Protestava uma voz feminina familiar.
- Você está dizendo que um reles humano como eu poderiam complicar seres tão poderosos? - Ela reconheceu a voz de Sérgio Reis em tom irônico. - Afinal de contas, vocês que disseram que eramos especiais, que nos queriam, pegaram alma e tudo mais. Depois querem depoimento pro barão... parece que vocês não sabem bem o que querem, não é mesmo?
- Nós não dependemos de vocês para nada, mortal idiota! - Enfureceu-se a mulher.
- Isso é discutível... você mesma disse que a minha alma é uma mercadoria de valor.. e fizemos um contrato, então acho que tem que cumprir seu papel e parar de dar piti - provocou Sérgio Reis.
- Xiiii.. - disse Rufus vendo a mulher ir até o bardo e golpeá-lo com violência.
- Sem a alma isso não doí tanto... - relevou Sérgio.
- Tome sua alma.. - disse a mulher pegando o rubi. - Suma da minha frente.
- Na na ni na não. Vai quebrar o contrato? Tem clausulas contra isso... multa.. juros.. não é assim não. Tu te tornas eternamente responsável pelas almas que roubas... já dizia o pequeno príncipe de algum lugar...
- Sérgio... Rufus... - gritou Kaliandra que apareceu correndo.
- Kaliandra, está viva?
- A valquíria levou sua alma.. - surpreendeu-se a githyanki, que ainda estava ali, enquanto o restante dos piratas já ia mais à frente.
- Bem, ela ficou com meu corpo, mas liberou minha alma para buscar vingança contra Shei Long... precisamos voltar para Faerun. Para Myth Drannor.
- A gente podia se juntar, Kaliandra.. - se insinuou o pálido Sérgio Reis. - Você é uma alma sem corpo... eu sou um corpo sem alma... que tal viver em mim?
- Deixe de idiotisse, seu imbecil... eu preciso de ajuda de Bibiana.. - e com seus poderes arcanos, Kaliandra Boaventura enviou uma mensagem mágica na esperança de que por estar no plano entre os planos, que a mensagem chegasse à sua deusa. - Senhora dos elfos, escute sua filha e me devolva a Faerun para que a esperança possa ainda existir.
Não houve resposta.
- Eu tô sempre aqui pra você.. -insistiu Sérgio.
- Você que também é um deus dos elfos tem o dever de olhar por seu povo... - disse a elfa mudando de alvo e conjurando nova magia de mensagem. - Me devolva para Faerun e mostre de que lado está.. Rhange Hesysthance.
Não houve resposta. Mas Kaliandra viu que não havia mais nevoa ao seu redor. Estava em uma escadaria arcaica acompanhada de Rufus, Sérgio, Ohterrível e da githyanki. Uma porta se abriu atrás deles.
- Mas o que diabos... - disse Derdeil Óphodda vendo seu aliados.
A escadaria era antiga, mas a guardiã de Timothy Hunter percebia rastros de alguns dias atrás da mesma forma que antes. Não eram os mesmos rastros, mas eram humanos com cajados em sua maioria, com idade mais avançada. . Edgar adiantou-se e deparou-se com um aposento grande, onde haviam treze estátuas grandes e similares às que os haviam atacado anteriormente. Bastou ele adentrar o aposento para os golens de pedra tentarem alcança-lo, obrigando-o a recuar.
- Há muito razão e sabedoria em suas ações... - disse Excelsior, enquanto Derdeil usava seus poderes e conhecimento de clérigo para curá-lo. - Além de um arcano, é também um manipulador de poder divino. Ainda que o verdadeiro poder esteja com os arquimagos, há poder nos lacaios que manipulam o que é mastigado pelos deuses. Você é um teurgísta místico?
- Sim... - disse Derdeil. - Não me furto a nenhuma forma de servir ao grande Rhange Hesysthance, senhor da magia. Afinal de contas, todo mago só manipula a magia pela graça do Altíssimo.
- Isso certamente pode ser um benefício para a reconstrução de Halruaa... - continuou Excelsior. - Você deveria ser posto como um dos elderes. Precisamos de conselheiros com sua capacidade, Óphodda.
- Seria uma honra, nobre nethyarca.. - disse Derdeil vendo que o velho buscou a bolsa e tirou um amuleto com a mesma insígnia em Z do baú.
- Isso irá garantir a passagem... servirá para lidar com as estátuas!
- Edgar!!! - Disse Óphodda chamando seu familiar e entregando o amuleto. Porém, assim que o amuleto foi ativado, as estátuas cresceram, ficaram mais ameaçadoras e seus olhos emitiram um sinistro brilho vermelho. Nesse momento, o nethyarca Procópio Excelsior se teleportou para longe dali. O corvo recuou, mas isso não deteve as estátuas que seguiram avançando. Mari'bel tentou tirar Derdeil dali, mas o mago pediu que esperasse.
Usando seus poderes de escolhido da magia, Óphodda invocou uma porta dimensional que deveria levá-lo para a porta do outro lado do aposento. A magia selvagem que cobria Halarah afetou a conjuração e ele conseguiu colocá-los do lado de cá da porta, ainda fechada, à mercê dos inimigos. Edgar tetou abrir a fechadura com seus talentos ladinos, enfiando seu bico pela fechadura arcaica. Ele conseguiu destravá-la, mas viu um efeito de transmutação acertá-lo. Onde antes havia o corvo, estava agora um escamoso kobold.
As estátuas tornaram a avançar. Mari'bel despejou ataques de oportunismo com flechas capazes de emaranhar os golens por alguns segundos. Os três primeiros foram assim contidos, mas o quarto lançou-se sobre ela, que conseguiu desviar-se, vendo o inimigo afundar a mão na parede de pedra onde ficou preso. O quinto, por sua vez, acertou-a com um golpe firme fazendo-a sentir o peso da ameaça.
Derdeil resolveu livrar-se da armadilha mágica com um dissipar magia. Dessa vez, a magia selvagem engrandeceu o efeito ao ponto de desligar não só a armadilha mágica, mas até mesmo os golens, além de outros efeitos e itens mágicos. Mas não devolveu Edgar à sua antiga forma, o que deixou claro que o efeito era permanente. Ainda assim, ele abriu a porta com mais facilidade agora que tinha mãos.
Eles passaram a outro corredor com uma escada descendo e ao fim, outra porta.
Rufus Lightfoot e Sérgio Reis, marujos piratas do plano astral seguiam com seu bando agora. A mulher havia teleportado-os com seus poderes psiônicos até o restante do grupo, quatro outros machos da espécie dela, liderados por um capitão chamado de Capitão Uber. Além destes, haviam cinco outros cujas feições se escondiam sob mantos como o de monges reclusos. Nem mesmo enfiando a cara abaixo deles, Rufus conseguiu perceber algo de seus rostos.
- Isso aqui tá muito estranho... - disse o hobbit-aranha.
- Você ainda não viu nada... - alertou o Capitão Uber em sua mente.
Haviam viajado por horas, que pareciam dias, ou talvez fossem semanas, não conseguiam ter noção de nada ao certo até avistarem o lugar para onde se dirigiam, ou melhor, o não-lugar como fora chamado pelos githyankis.
- Não-lugar? Mas o que couves-de-bruzelas é um não lugar? - Questionou Rufus.
- É um lugar que não existe em si, mas na congruência limítrofe entre os lugares. Um ponto escanteado entre os nodais da existência... - disse a estranha mulher.
- Ah,.. não entendi.. - insistiu o ladino.
- É como se fosse um cantinho esquecido de vários planos... - avaliou Ohterrível.
- Uma vez lá, vocês não devem falar com ninguém. Entenderam? Qualquer um com quem falarem terá poder sobre vocês! - Comandou Uber. Rufus e Ohterrível concordaram.
- Pode deixar, patrão. Não falar é comigo mesmo... - disse o Sérgio Reis, que estava muito pálido desde que perdera a alma.
Diante deles havia uma colossal rocha flutuante como uma parte de uma montanha. No entanto, não estava presa ou ancorada a nada. Também não se via rocha nua que fosse, pois sobre tudo haviam barracos e construções precárias de no máximo dois pavimentos, muitas das quais escoradas umas nas outras. Tudo era caótico e desordenado, sem ruas ou avenidas. Também não haviam praças e jardins, mas apenas uma contínua favela conjugada.
Eles se dirigiram diretamente para uma taverna, que era a maior construção naquela ilha surreal. Ao entrarem, o lugar estava repleto de githyankis que lutava, jogavam, bebiam e consumiam toxinas. A maioria do que se passava ali era ininteligível para Rufus, Sérgio e o dragão. Mesmo assim, o bardo sacou seu berrante e tocou anunciando:
- Eu sou Sérgio Reis, o cãozinho do berrante...
- Cale-se, seu imbecil! - Disse a estranha mulher dando-lhe um tapa.
O Capitão Uber parecia ser o próximo a punir Sérgio Reis, mas antes disso, alguém naquela multidão o convocou:
- Aí está você, Uber. Como foi sua jornada e que homenagens tem para me oferecer?
- Nossa viagem foi bem aventurada, grande Haplika Tyvo. Encontramos um plano material que se aproxima do fim e cujas energias podemos canalizar para nosso objetivo.
- Um plano material? - O sujeito que parecia uma espécie de senhor daquele lugar se ergueu já deixando a raiva aparente.
- Si.. sim... sim, barão. Este humano nos garantiu que seu mundo está perto de fim, não é Reis?
- Ah sim.. pertíssimo... tudo culpa dos elfos, sabe.. - começou a tagarelar Sérgio Reis. - Sabe como são esses elfos com esses títulos de nobreza idiotas, picuinhas familiares e perspectivas pequenas. Estão acabando com tudo... todo elfo é corrupto e ladrão. E o que merecem os ladrões? Serem punidos... todos... sem exceção...
- Cale-se.. - silenciou-o a estranha mulher githyanki.
- Nós precisamos de pelos menos dez planos! - Exaltou-se o barão Haplika Tyvo. - EU MANDEI VOCÊ ENCONTRAR DEZ PLANOS!! E VOCÊ ME VOLTA COM UM?!?
Enquanto ele ia falando, o Capião Uber começou a flutuar e engasgar como se uma mão invisível apertasse sua traqueia. Ele se contorcia como se estivesse prestes a morrer.
- Eu... irei... conseguir... - Uber gemeu.
- Essa é sua última chance! - Tyvo o soltou e logo o burburinho substituiu o silêncio que o encontro gerara.
Os piratas do plano astral se apressaram em deixar o lugar.
A alma de Kaliandra Boaventura viu-se não mais na imensidão enevoada do plano astral, mas em uma planície apinhada de criaturas. Era difícil entender alguma coisa no caos de seres em que surgiu. Haviam muitos humanos, mas também alguns hobbits. Os humanos corriam e tentavam se refugiar, ao mesmo tempo em que cantavam preces para Chauntea:
- Debulhar o trigo... recolher cada bago do trigo... forjar no trigo o milagre do pão...
Os hobbits tentavam escapar por baixo no chão duro e cinzento, enquanto clamavam por Yondalla:
- Início está atrás, o mundo à frente... há muitos caminhos a trilhar... através de sombra, para a borda da noite... até que as estrelas estão todas acesas...
Em meio ao turbilhão, Kaliandra percebeu a centena de demônios que voavam acima de sua cabeça. Um deles desceu em carga e agarrou a alma que estava ao lado dela. O pobre servo de Chauntea gritou em agonia, enquanto era absorvido pelo monstro.
Estava nas Planícies Cinzentas, tinha certeza, mas não havia sinal de nenhum deus que fosse resgatando as almas de seus fiéis. Apenas demônios ceifando almas. Ela pensava sobre o que devia fazer, mas antes que pudesse reagir, um vrock a agarrou e a carregou para o alto. A trovadora da espada lutou para se libertar, mas o demônio urubuzento já começava a absorvê-la. Ele só foi detido porque de uma rasgo no espaço-tempo surgiu uma magnífica mulher pronta para a batalha. A valquíria decepou a cabeça do vrock com um só golpe e tomou Kaliandra para si.
Em um piscar de olhos, as duas estavam em um amplo salão. Todo o espaço central era ocupado por uma enorme mesa de madeira rústica sobre a qual haviam incontáveis pratos e bebida. Muitas mulheres celebravam e cantavam ao redor da mesa. Nas paredes, expostos como troféus, haviam infindáveis cabeças de animais, humanoides e outros seres.
- Quem é você? - Disse a valquíria para a alma nua de Kaliandra.
- Eu sou Kaliandra Boaventu... - antes que a elfa terminasse, a mão direita da ceifadora de almas já calara sua voz com um golpe esmagador no maxilar. Veio outro na boca do estômago e um terceiro como um martelo que a jogou no chão.
- Não existe mais Kaliandra! Você é uma valquíria!!
Kaliandra lutou contra dor e tentou se levantar, pensando que o vrock não parecia tão ruim agora.
- Qual é sua missão? - Insistiu a valquíria.
- Eu devo salvar meu mundo e... - um chute da valquíria acertou Kaliandra no peito e jogou-a contra a parede como se fosse uma boneca.
- Sua missão é a missão das valquírias! Nada mais. Você que ama Derdeil Óphodda deve aceitar as verdades e não mais lutar contra elas. Você precisa, porém, pagar o preço de sua iniciação! Deve provar que merece ser uma de nós!
- E... o.. que.. devo... fazer? - Gemeu Kaliandra.
- Para se tornar um espírito da vingança, você deve buscar a alma de Shei Long, cuja existência marcou a sua e pede pagamento em sangue por seus crimes. Traga a alma dele após ceifar sua vida e sua alma ascenderá novamente a Valhala. Fracasse e nada restará de sua existência em lugar algum do multiverso.
- Assim farei... - Kaliandra ajoelhou-se. De repente, seus cabelos se tornaram prateados, assim como uma armadura de placas e uma grande espada surgiram sobre seu corpo. - Obrigado, senhora.. - a elfa disse erguendo os olhos, mas viu que já estava em um lugar inóspito enevoado. De volta ao plano astral. Ao longe, ouviu uma discussão:
- Sua estupidez poderia ter custado nossa existência! - Protestava uma voz feminina familiar.
- Você está dizendo que um reles humano como eu poderiam complicar seres tão poderosos? - Ela reconheceu a voz de Sérgio Reis em tom irônico. - Afinal de contas, vocês que disseram que eramos especiais, que nos queriam, pegaram alma e tudo mais. Depois querem depoimento pro barão... parece que vocês não sabem bem o que querem, não é mesmo?
- Nós não dependemos de vocês para nada, mortal idiota! - Enfureceu-se a mulher.
- Isso é discutível... você mesma disse que a minha alma é uma mercadoria de valor.. e fizemos um contrato, então acho que tem que cumprir seu papel e parar de dar piti - provocou Sérgio Reis.
- Xiiii.. - disse Rufus vendo a mulher ir até o bardo e golpeá-lo com violência.
- Sem a alma isso não doí tanto... - relevou Sérgio.
- Tome sua alma.. - disse a mulher pegando o rubi. - Suma da minha frente.
- Na na ni na não. Vai quebrar o contrato? Tem clausulas contra isso... multa.. juros.. não é assim não. Tu te tornas eternamente responsável pelas almas que roubas... já dizia o pequeno príncipe de algum lugar...
- Sérgio... Rufus... - gritou Kaliandra que apareceu correndo.
- Kaliandra, está viva?
- A valquíria levou sua alma.. - surpreendeu-se a githyanki, que ainda estava ali, enquanto o restante dos piratas já ia mais à frente.
- Bem, ela ficou com meu corpo, mas liberou minha alma para buscar vingança contra Shei Long... precisamos voltar para Faerun. Para Myth Drannor.
- A gente podia se juntar, Kaliandra.. - se insinuou o pálido Sérgio Reis. - Você é uma alma sem corpo... eu sou um corpo sem alma... que tal viver em mim?
- Deixe de idiotisse, seu imbecil... eu preciso de ajuda de Bibiana.. - e com seus poderes arcanos, Kaliandra Boaventura enviou uma mensagem mágica na esperança de que por estar no plano entre os planos, que a mensagem chegasse à sua deusa. - Senhora dos elfos, escute sua filha e me devolva a Faerun para que a esperança possa ainda existir.
Não houve resposta.
- Eu tô sempre aqui pra você.. -insistiu Sérgio.
- Você que também é um deus dos elfos tem o dever de olhar por seu povo... - disse a elfa mudando de alvo e conjurando nova magia de mensagem. - Me devolva para Faerun e mostre de que lado está.. Rhange Hesysthance.
Não houve resposta. Mas Kaliandra viu que não havia mais nevoa ao seu redor. Estava em uma escadaria arcaica acompanhada de Rufus, Sérgio, Ohterrível e da githyanki. Uma porta se abriu atrás deles.
- Mas o que diabos... - disse Derdeil Óphodda vendo seu aliados.
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