Daphne deixou a estalagem de Annia atordoada com tudo aquilo e resolveu perambular pelos templos que haviam ao redor do anfiteatro. O movimento diminuíra após a Assembléia Máxima, mas ainda haviam muitos fiéis no interior das basílicas e catedrais.
A maior e mais destacada dentre as casas dos deuses era o templo de Shar com suas grandes torres de mármore negro, que eram das mais altas da cidade. Ao lado deste ficava o templo de Loviatar, deusa da dor e do sofrimento, onde ela pode ver um pequeno grupo que se mutilava sob os comandos de uma clériga, mas sem gritaria ou baderna, um sofrimento austero, soando apenas os chicotes. A seguir estava o templo de Mask, senhor dos ladrões, que ela conhecia bem e onde viu uma celebração glorificando as ações do imperador e do deus dos espertalhões.
Na rua ao lado havia um pequeno templo de Shandakul, senhor das viagens e dos caminhos, que era o menos movimentado. O templo seguinte pertencia a Azuth, deus dos magos, onde uma magia coletiva era elaborada para proteger toda a cidade nos combates vindouros. Depois deste estavam as igrejas de Akadi, deusa do ar, e de Gruumbar, deus da terra, ambos divindades elementais, onde pessoas ajoelhadas rezavam para os céus e para o chão, respectivamente, parecendo alheias aos arredores.
Por fim, completavam a praça os templos de Talos, lorde da destruição, onde uma longa fila de pessoas caminhavam até uma fonte onde quebravam cerâmicas, pratos e estatuetas em adoração ao Senhor do Caos. Adiante, estava a Basílica de Myrkul, menor apenas do que a de Shar. Daphne sabia que aquela era uma antiga divindade da morte e dos mortos, que fora substituída por Cyric e depois por Kelemvor nos últimos 15 anos. Mesmo assim eram numerosas as pessoas que sentadas e de olhos fechados rezavam no interior amplo. Auril, deusa do frio, possuía aqui um templo tão grande quanto os de Gruumbar e Akadi, deuses de maior grandeza, e parecia contar com muitos fiéis, que portavam velas acesas por um fogo frio e azul. Waukeen, deusa do comércio, contava com modesta igreja, tão diferentes das que a druida já vira, sem ouro ou prata. Imperava a sobriedade e os espaços amplos como em tudo mais.
Haviam muito devotos preocupados com as trevas de Shar sobre Águas Profundas e seus pedidos eram de proteção contra o mal que crescia no oeste em todos os lares divinos. Todos temiam que a Dama das Trevas lhes devorasse as almas e obliterasse toda a existência. Não parecia segredo para ninguém ali, mesmo para o mais embrutecido escravo, as intenções da Senhora da Escuridão. Depois de milênios presos entre as sombras, o neonetheres não pareciam dispostos a mergulhar nas trevas perpétuas.
Daphne passou pelos templos dos deuses da natureza e das divindades neutras dedicando-lhes suas preces e pedindo sabedoria naquele momento tão difícil. Foi quando ela estava praticamente sozinha no templo de Shandakul, entregue às preces, enquanto um grupo de senhoras cuidava do altar, que viu surgir o sombrio homem que avistara durante a Assembléia Máxima. Ela logo viu que se tratava de um dos filhos do imperador Telamont. Ele aproximou-se e fez um cumprimento respeitoso ao altar e outro à druida.
- Saudações, embaixadora da Grande Floresta. Eu vim levá-la de volta para o seu lar...
- Não irei passar mais tempo aqui?
- Todos já foram liberados para retornarem às suas comunidades e comunicá-los da decisão e convocação para nossa guerra. Os que podem fazê-lo já estão seguindo e eu fui responsável por teleportá-la com a graça de Shar. - O príncipe das sombras fez sinal para que ela o acompanhasse. Ele era alto e parecia jovem ainda, tendo passado pouco dos trinta anos, ela diria. Os cabelos e os olhos eram negros, mas a pele um tanto pálida. - Meu nome é Melegaunt Thantul. Posso ver que a graça de Shar não lhe agrada.. pois lhe farei uma pergunta: o que você pensa ser a arte das trevas?
- Me parece um instrumento... uma outra forma de fazer magia.
- Parece que existe mais sabedoria em você do que nos seus. Posso ver no seu belo olhar que não é como os outros. Todos apressadamente dizem ser o contrário da magia. Aquilo que Shar trás aos seus é uma possibilidade de se construir magia.. assim como o faz Mystra e outros mais. Meu povo sobreviveu graças a esse conhecimento e ao bom uso dessa força. Graças a ela, meu pai vem governando com sabedoria há mais de mil anos. Ao contrário de meus irmãos, não anseio pelo dia em que ele perecerá e terá início uma guerra fratricida pelo poder entre eles. Eu acredito que depois dessa prolongada prisão, há muito o que ver e admirar em nosso vasto império.
- Ainda assim, as forças alheias à vida e à natureza que elas carregam me perturbam...
- Eu posso nos levar pelo tecido mágico de Mystra se você preferir, não seria um problema para mim. - Melegaunt tocou a mão da druida enquanto começava a conjurar a magia e os levava para longe dali. O príncipe das sombras, no entanto, deixou sua atenção recair mais sobre a companhia, o que acabou diminuindo a precisão de seus gestos arcanos. Assim, o destino do mago das trevas não saiu como o planejado. Ele e sua acompanhante surgiram em um escura caverna cercados por uma batalha. Ao redor deles estava um grupo de kuo-toas lutando contra o que pareciam aventureiros humanos.
Ehtur foi o primeiro a reconhecer Daphne, após derrubar um homem-peixe próximo. Sirius, Úrsula, Muadib e Falkiner investiram contra as criaturas libertando os escravos. Estavam à margem do rio subterrâneo sob a montanha, por onde os kuo-toas traziam seus escravos. Enquanto os skums tentavam fugir, todos ali descobriram que havia mais naquelas águas turvas. Surpresa maior que a chegada da druida e de seu acompanhante causou o ataque de Sirius Black contra Francisco Xavier, que fez o mago se desfazer em um brilho fulgás. Antes que pudessem tomar providências vendo que o ladino de Selune estava dominado, foi a vez de verem Ehtur Telcontar sucumbir ao domínio mental. Ele investiu contra Muadib, enquanto Sirius atacou Daphne.
Sem saber do que se dava na batalha, Ryolith e Rock garantiam a segurança dos outros libertos e de Rose Anne em um aposento anterior. Leila Diniz pressentiu o que acontecera com seu protetor e resolveu avançar.
Mais adiante, John Falkiner, Muadib e Úrsula investiam contra as águas na esperança de deter o monstro marinho de comandava a dominação de seus colegas. Daphne percebeu que se tratava de um aboleth e atirou-se às águas tomando a forma de um octopos gigante. Seus tentáculos agarraram-se ao monstro, que não exitou em dominá-la, no entanto.
Mesmo assim, a investida da druida garantiu o necessário para que o clérigo de Kelemvor clamasse pelo poder divino da morte e fulminasse com cólera celeste o corpo da criatura. Ainda que esta tenha resistido, o aboleth se viu gravemente ferido. Melegaunt Thantul aproveitou para libertar os dois humanos de seu controle.
Sob a chuva de ataques do sobrevivente da masmorra e da matadora de magos, a criatura optou por fugir. Resgataram Daphne e puderam então se reagrupar para conversar. Daphne contou sobre o que se dera na Cidade Obscura, enquanto eles embarcavam as pessoas em botes que haviam por ali. Lembraram aos marinheiros que eram livres e que ninguém poderia mudar isso.
- Como chegaram aqui? Ninguém pode se teleportar para essa masmorra Sob a Montanha. - questionou Falkiner.
- Nenhum lugar é vedado para mim, homem de Suzail. Inclusive, eu vim apenas trazer a embaixadora e se é com vocês que ela deseja ficar, eu partirei, mesmo achando que ela mereça melhores companhias. De qualquer forma, devem saber que Nova Netheril irá sempre proteger o seu povo. Meu pai é um homem justo e sábio. Adeus, Daphne. - Melegaunt conjurou o teleporte e nada aconteceu. Todos riram, com exceção de Daphne. - Deve haver alguma proteção mágica. Mas usarei meus poderes das sombras e isso não me impedirá.
- Espe.. - tentou alertá-lo Leila Diniz, mas Melegaunt descobriu por si próprio que aquilo também não funcionou. O mago não disfarçou sua insatisfação.
- Eu preciso descansar. Depois de estudar minhas magias poderei sair daqui.
- Claro, claro.. - iam dizendo os demais, que já tentavam alcançar Ehtur e Sirius que não haviam ficado perdendo tempo com a conversa. Ryoliyh Fox aproveitou para confirmar com sua fé que Melegaunt não era mau como os outros nethereses e sombrios que o paladino conhecera. Os dois já haviam chegado à caverna mais adiante, novo caminho que alcançaram seguindo a fé de Falkiner.
- Daphne Amkathra? Minha filha? - Todos puderam escutar os gritos de uma mãe desesperada. - Olhe só pra você!!! Parece um espantalho! Que roupas são essas? Você parece uma perdida, menina. O que eu fiz pra merecer isso, minha filha? Seu pai se matando para ganhar o controle da cidade e o respeito que nossa família merece e você indo regar árvores? Isso só pode ser carma, meu Máscara.. ó senhor dos ladrões, por que?
- Mãe.. agora não é hora para isso... e você sabe muito bem o que eu penso da sua família...
- Você sempre será uma de nós.. uma Amkathra.
- Minha família está na Grande Floresta! - E com aquelas palavras, ela se transformou num elfo negro para enxergar melhor na escuridão e auxiliar seus amigos.
A fé de Falkiner os levou até uma estreita caverna com um chão repleto de runas mágicas. Não eram simples runas marcadas magicamente, mas sim runas místicas primordiais, uma das formas mais antigas de se fazer magia. Elas cobriam todo o chão a se perder de vista. Uma rápida inspeção revelou que causariam grande estrago. Leila Diniz e o clérigo combinaram seus poderes para anular as primeiras, mas suas forças se esgotaram antes de um terço delas. Melegaunt disse que só poderia fazer algo caso descansasse e diante de tal impasse, optaram por descansar todos. Úrsula e Muadib acharam uma sala anexa guardada por uma armadilha, enquanto os demais buscavam o repouso. Após transpô-la, eles encontraram algum dinheiro e itens mágicos. Falkiner, por sua vez, usou o poder de Kelemvor para se transformar em um ser etéreo vagando em segurança além do alcance das magias das runas. Ele chegou até uma caverna ampla e dali para uma sala imensa repleta de ácido fumegante e esmeralda. Retornou antes que o poder findasse e alertou os colegas.
Durante o turno de Daphne, ela avistou um vulto espreitando no corredor. Ehtur e Muadib já haviam visto rastros de homens lagartos ou similares que passavam sobre as runas. O guardião de Mielikki sentia o cheiro rançoso do ácido no ar, que parecia mais forte nessas horas que se passaram.
Antes de tentar uma nova partida, atendendo às súplicas do bárbaro Rocck, Melegaunt liberou um feitiço que foi capaz de temporariamente anular as runas. Vinte e uma sucumbiram ante seu poder das trevas. Ele despediu-se uma vez mais de Daphne e conjurou seus poderes para uma viagem planar. Todos duvidaram, mas dessa vez ele se foi.
Avançaram e conseguiram anular as três últimas runas. Isso deixou o caminho livre para que seguissem até o ponto em que acessaram a caverna perpendicular, mais larga. Naquele ponto, encontraram uma barricada e acabaram alvejados por um relâmpago mágico. Preferiram, entretanto, usar de diplomacia e convocar o dragão para um acordo. O lacaio dracônico trouxe o imenso dragão que era seu mestre:
- Eu sou Keygrodekkerrhylon, senhor desse rio e dessas cavernas. Vocês ousam invadir minha morada, ameaçar meus servos e cobiçar meu tesouro?
- Temos uma importante missão.. - acrescentou Daphne.
- Fomos enviados pelo dragão Inferno para resgatar um artefato.. o cetro de Lathander. - completou Falkiner.
- O cetro do sol me pertence. Tudo aqui me pertence.
- Ele é necessário para expulsar as trevas que cobrem Águas Profundas - disse Daphne.
- E você não parece ter tanto governo por aqui.. - provocou Falkiner.
- Os kuo-toa perturbam meu território com sua deusa vadia e seus escravos, mas ainda sou o senhor dessas cavernas. O que se passa lá em cima não me importa, humanos. Os tempos são prósperos para mim. Este artefato é de minha propriedade e não irei entregá-los a vocês.
- Nós podemos pagar por ele eliminando os kuo-toa - retrucou Ehtur.
- Isso não me interessa. Vocês precisariam de muito ouro..
- Quanto?
- Um milhão de peças.
- É demais para nós.
- Eu aceitaria outro artefato igualmente poderoso - ponderou o imenso dragão.
- Nós possuímos um artefato.. - disse Leila Diniz olhando para o amuleto de Ryolith Fox.
- Ou melhor.. dois.. - completou Rock olhando os óculos de Sirius.
- Escolham quem deixará seu artefato ou eu decidirei! - Disse Ehtur sem pensar duas vezes. O paladino segurou entre os dedos o símbolo sagrado de seu deus que pertencera a um dos maiores paladinos da justiça daquele mundo. Sentia um enorme carinho por aquele objeto que sempre o fez sentir Tyr mais próximo dele Enquanto isso, a tensão permanecia.
- Por que eu tenho que entregar o meu artefato? Eu acabei de recebê-lo.. por que sempre eu tenho que me sacrificar para salvar a todos por aqui? Sempre o Sirius.. sempre eu que...
- Cale-se, seu ladrão egoísta. Se alguém deve se sacrificar aqui, esse alguém sou eu! - Ryolith Fox arrancou o amuleto e atirou ao dragão.. - Com ou sem amuleto Tyr, a justiça e a verdade sempre estarão comigo e com os justos. Aqui está, dragão... onde está o cetro do deus do sol?
Com satisfação, ainda que segurar o amuleto lhe causasse enorme dor, Keygrodekkerrhylon os conduziu até uma caverna contígua onde lhes entregou o cetro todo de ouro com pedras preciosas cravejadas. Assim que deixou as mãos malignas e escamosas do dragão, o artefato passou a brilhar como uma estrela dourada. O dragão negro lhes orientou que poderiam tomar as águas de sua caverna para chegar até o mar e dali até Águas Profundas. Tão logo o fizeram, John Falkiner, que recebeu o artefato viu que podia respirar mesmo sob as águas. Nadaram tudo que puderam até avistar a superfície, onde encheram uma vez mais os pulmões com ar.
Estavam muitos quilômetros em alto mar. Haviam apenas alguns botes ao longe entre eles e a torre de trevas que crescera na Cidade dos Esplendores.
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