2 de out. de 2015

Eu, Derdeil


A bela elfa e o sisudo elfo recém surgidos cercavam Kaliandra Boaventura como a uma mãe. Tudo ainda era muito confuso para ela, que trazia em si a essência do feminino élfico e parecendo dominar a percepção dos dois novos seres. A trovadora da espada buscava o nome da deusa dos elfos que lhe escapava como se algo a impedisse de pronunciá-lo. 
Mari'bel sabia que nada ali poderia estar certo estando sob o domínio do deus da magia. A killoren apenas buscava ajuda, um equilíbrio que fosse possível orando aos deuses que sabia cuidariam disso. No entanto, também para a fada era impossível pronunciar os nomes. Então, ela seguia ali ajoelhada na grama da clareira a orar. 
Rufus Lightfoot e Ohterrível voaram dali assim que sentiram o tremor e viram as chamas irromperem ao longe. Subindo acima da clareira, os dois puderam ver o vulcão ao sul que cuspia lava e fazia a terra tremer. O dragão que crescia cada vez mais tinha certeza que haveriam dragões lá, os primeiros dragões desse novo mundo.
- Mas você é o primeiro dragão desse mundo, Azuzu... - Ponderou Rufus sem concordar com a linha de raciocínio de Ohterrível.
Porém, naquele novo mundo, nenhum deles era como Derdeil Óphodda, escolhido de Rhange Hesysthance, o único e verdadeiro deus. Mais do que a magia, agora toda a realidade estava subordinada aos seus desígnios.
- Cada desejo se torna realidade! - Bradou o deus terminando o movimento que conformara o surgimento da cadeia montanhosa do vulcão, que ia se formando da lava que jorrava. - Nós somos os próprios fundamentos da existência de Faerun.
- Eu entendo, mestre. É um poder infindável! - Concordou Derdeil, que para demonstrar que entendera, conjugou o poder fazendo o pequeno corvo familiar, Edgar, crescer, tornar-se um corvo gigante, passando a olhar seu senhor com a expectativa de ter cumprido algo digno.
- Mais, mestre, mais! Torne-me uma águia careca americana!!! - Gritava Edgar intoxicado pelo poder.
A cajadada na face de Derdeil foi a resposta que o lançou ao solo.
- Não tema o poder, Derdeil. Aceite o máximo poder! - Disse Rhange deixando o tecido mágico pulsar com seus desígnios. - Não é hora de brincadeiras pueris, mas sim de ações afirmativas!
O único deus que havia lançou as ondas energéticas sobre os dois elfos que cercavam a elfa-mãe Kaliandra Boaventura, bem como do elfo verde que primeiro chegara. O que era até então verde e esguio metamorfoseou-se no que parecia muito mais uma planta ambulante do que um gracioso elfo. A menina ganhou asas formosas e ares angelicais, bem como o rapaz recebeu chifres, garras e asas demoníacas.
- É disso que estou falando, meu velho - vangloriou-se Rhange satisfeito com suas novas criações, mais condizentes com seu novo mundo. - Faça o que tu queres, pois é tudo da lei. Da sua lei!
Derdeil Óphodda levantou-se mais determinado dessa vez. Ele percebia que não haveriam limites além dos que ele mesmo desejasse impor. Ele fixou os olhos em sua amada Kaliandra e ela sentiu que algo mudara dentro dela. Sua carne teve espasmos como se um espírito maligno a invadisse. Derdeil plantou sua semente no ventre da elfa e ela sentiu seu corpo ser conspurcado. Ela tentou arrancar aquilo de seu ventre com sua espada, mas foi contida pelos elfos, derramando apenas uma parte do seu sangue. Isso fez com que três vezes repetisse um nome com sede de vingança:
- Valquíria. Valquíria. Valquíria!
A trovadora da espada viu uma cisão surgir no espaço-tempo e a guerreira vingadora alada surgir. Além da espada desproporcional, a valquíria buscava o responsável por interromper os caminhos da vingança.
- Suma! - Desejou Derdeil e foi isso o que aconteceu de imediato. Mas por outro caminho a valquíria retornou.
- Sua missão está cumprida, Valquíria! - Ela disse olhando para Kaliandra. - Mas seu espírito não está mais livre!
Enquanto isso, a pequena Mari'bel mesmo sem conseguir pronunciar os nomes divinos que buscava conseguiu harmonizar-se com aquelas forças vitais tão familiares às da Grande Floresta que ela carregara em si. A killoren deixou aquela materialidade que a limitava e mergulhou no próprio espírito daquela mata. Ela sentiu-se a própria deusa daquilo tudo. Por um instante, ela percebeu que também havia necessidade e lugar para o equilíbrio naquele novo mundo e que o equilíbrio sempre achava um caminho.
Mas Rhange Hesysthance a ceifou desse vínculo devolvendo-a ao seu corpo de fada:
- Nada disso, menininha. Que tal você se limitar aos seus limites... - E tendo dito isso, o deus fez dela uma árvore, ali enraizada na clareira.
Primeiro, Mari'bel sentiu-se limitada. Não percebia mais Rhange, Derdeil ou Kaliandra. Não tinha visão ou audição. Porém, logo, pelas folhas e galhos, ela sentiu a proximidade das demais árvores que lhe comunicavam no farfalhar:
- Seja uma árvore.
A killoren resistiu no princípio, pensou ser aquilo mais uma tramoia do maldito deus. preferiu centrar-se em si mesma e concentrar-se de novo. Mas quando o elfo transmutado em ser-planta veio e a abraçou, entregando a ela suas energias, tudo pareceu fazer sentido. Mari'bel percebeu que qualquer que fosse a forma, nada poderia limitá-la, nada além dela mesma, pois tudo agora era uma questão de energia.
Enquanto isso, a Valquíria buscou por Kaliandra, mas Derdeil não permitiu a ela estar naquele plano que lhe pertencia. Se não podia expulsá-la, o poderoso mago usou de seus poderes e finalmente destruiu o que havia de vida nela. Possuída por uma fúria e mesmo com os dois elfos, que insistiam em chamá-la de mamãe tentando contê-la, a trovadora da espada atirou-se sobre a carcaça morta da Valquíria que ela convocara. Esse toque foi o suficiente para despertar o poder de Valquíria em Kaliandra Boaventura. Suas asas irromperam, assim como o poder a contagiou, ainda que seu ventre não parasse de crescer num ritmo sobrenatural.
Já bastante longe dali, Rufus e Ohterrível já avistavam os vultos dos primeiros dragões em meio aos picos dos vulcões. As criaturas gargãnticas pareciam lutar entre si. Haviam vermelhos e dourados. Uma dúzia deles ao que parecia. A batalha parecia sangrenta, enquanto a lava jorrava e as montanhas ainda se formavam.
Mari'bel usou da própria energia, da energia do elfo que recebera e da energia das árvores irmãs que a cercavam para comungar com todo o equilíbrio natural uma vez mais. Ela transformou-se em uma imensa sequoia, bem como tornou-se a alma daquela floresta. Como uma deusa da natureza, ela sentia cada ser vivo ali como um átomo de seu ser, cada espírito como uma fagulha de sua energia, cada respirar como um movimento de troca em sua própria harmonia. Isso foi suficiente para resistir à nova investida do deus Rhange, que já não era mais o único nesse mundo. Isso também expandiu ainda mais a percepção dela, abrindo a passagem pra seres feéricos e naturais que se multiplicaram para povoar a Grande Floresta em expansão.

Para contê-la, o primeiro deus Rhange Hesysthance, que se já não era mais o único, ainda era o maior, criou um cinturão desértico, uma área morta e sem vida que a floresta era incapaz de suplantar e onde a influência da nova deusa era impossível. O deserto era voraz para devorar as árvores, como se o vento que trazia a areia carrega-se a morte. Além disso, espectros sombrios e malignos começaram a vagar dentro da floresta e atacar seus habitantes com drenos de energia vital.
Por sua vez, na clareira que era o coração daquelas matas, Derdeil fez seu poder ser supremo, transformando-se numa chaga, num câncer que devoraria tudo por dentro. Ele arrancou cada madeira de cada árvore que ali havia e transformou-as no alicerce de sua imensa torre, que ocupou todo aquele espaço, tensionando os limites internos da floresta e destruindo inclusive a sequoia que era Mari'bel.
A deusa da natureza não se conformou a isso e brotou novamente a partir das raízes restantes no âmago da terra preta e úmida, irrompendo torre a dentro, enquanto Kaliandra buscava alcançar Derdeil e fazê-lo pagar por brincar não só com seu coração, mas também com seu corpo. Entretanto, a gravidez estava avançada e a barriga pesava demais. O parto se iniciou.
Derdeil Óphodda ergueu Kaliandra suspensa no ar e do ventre da elfa e Valquíria, um casal de bebês surgiu. Uma menina meio-elfa linda, tinha os traços do pai, era forte e robusta. Um menino meio-elfo malformado, fraco e raquítico de traços similares aos da mãe. As lágrimas desciam dos olhos da mãe imobilizada, enquanto as crianças flutuavam em direção ao nefasto pai.
O deus da torre no centro da Grande Floresta alcançou o menino, cujas feições lembravam as da mulher amada, que agora se via livre. Desvencilhando-se, ela correu para a grande árvore próxima e abraçou-a. Do sangue que ela vertia em contato com a casca da sequoia brotaram 42 crianças elfas da natureza, como o primeiro elfo planta que auxiliara Mari'bel. Derdeil não se importou com aquilo. Ele olhou por um instante a face acanhada do bebê, seu próprio filho, e sem titubear o degolou com sua adaga.
- Agora eu terei todo o poder, com o maior dos sacrifícios!!! - Foi o que ele disse enquanto era envolto por uma névoa sombria surgida do nada. A mesma névoa encobriu Kaliandra e Edgar.
Os três se viram juntos e cercados pela névoa. Ali também estava Mari'bel, mais uma vez materializada como uma killoren. As duas mulheres não suportaram aquela situação percebendo que o próprio ar que respiravam naquele lugar era maligno, mesmo que as estranhas brumas impedissem de ver o que mais havia. A torvadora da espada sabia que estavam em outro plano: um plano da pura maldade. 
- Não há outra solução... - Disse Mari'bel com convicção antes de tirar a própria vida.
Elas se mataram na esperança de que isso as arrancasse dali, mas suas almas continuaram presas naquele lugar. Mari'bel levantou-se como uma fantasma e Kaliandra como uma banshee, ambas atormentadas por Derdeil Óphodda, o senhor supremo daquele sinistro lugar. O mago não pode deixar de sentir a perda de sua amada, que parecia que finalmente seria sua, mesmo já não restando nada de vivo nele. 
No afã louco de tê-la de volta, ele conjurou todo o poder e arrancou de suas próprias lágrimas de sangue frio, do corpo de Edgar, da essência de Mari'bel e até mesmo dos confins longínquos da existência, energias residuais do que fora Kaliandra Boaventura para devolver a vida a seu corpo. Porém, ao invés de uma divina ressurreição, deu-se um profano efeito. Isso formou uma nova Kaliandra, um clone apático e sem vida dela, além de arrancar Rufus Lightfoot e trazê-lo para junto deles. O hobbit estava incrédulo, pois tinha acabado de chegar com Ohterrível ao covil dos novos dragões restantes, depois de ver Rhange Hesysthance chegar a um acordo com eles.
Testando os limites de seu poder, Derdeil Óphodda plantou mais uma vez sua semente em Kaliandra, ainda que aquele fosse um corpo morto e animado apenas pelos seus poderes. Enquanto o espírito dela seguia ali dando gritos desesperados e terríveis, o corpo dela tornou-se um morto-vivo, um carniçal. Ao mesmo tempo, uma nova torre surgiu para o lich mago senhor daquele plano. Junto com ele vieram três lacaias submissas a Derdeil, assim como uma floresta foi sendo revelada pelas brumas, onde Mari'bel buscou refúgio. 
Mas as investidas profanas de Derdeil Óphodda ainda não haviam acabado. Ele arrancou o feto natimorto do ventre da carniçal que fora Kaliandra e o plantou no ventre de uma de suas lacaias. Ali selado, um novo desenvolvimento o aguardava.
Enquanto o tormento rebuscado de horror prosseguia, Rufus vagou pela torre desesperado e torcendo encontrar talvez uma passagem para outro plano. Acabou encontrando um estranho aposento repleto de estátuas, várias delas familiares, todas elas pessoas ligadas a Derdeil. Mas o mago lich o expulsou do que parecia ser sua mente arrancando-o pelo próprio nariz. 
Enquanto Kaliandra lutou para recuperar seu corpo, apenas para sentir as dores de morrer novamente, o homem que ela amara um dia seguiu criando uma lagoa de sangue no centro da torre, de onde suas lacaias iam beber, ao mesmo tempo que Edgar reivindicava uma morada para si, um Ravenloft. E tudo isso enquanto as brumas se expandiam e iam revelando cada vez mais, um novo mundo de onde não havia como escapar...

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