3 de jan. de 2015

Mal que reside


Desde que surgira, alguns atos após o princípio de tudo, o anjo Malkizid aprendera a apreciar a beleza da criação. As luzes ali nos Sete Céus eram perpétuas e acalentadoras. Tudo era positivo e maravilhoso, não havendo tempo para dor ou sofrimento. Ele entendia bem que aquele lugar representava o que havia de bom em todos os lugares, que era um desdobramento ao mesmo tempo que a afirmação de pura bondade sob os desígnios da ordem. O centro de tamanha perfeição era o maior de todos os anjos, seres de pura bondade e ordem. Ele, que chamavam Zaphkiel, senhor do conhecimento, o primeiro dos sete arcanjos. Certa vez, o puro dentre os puros lhe explicou:
- Não sou o primeiro, mas sim o último. Não sou o tudo, pois sou o nada.. assim como cada um, eu faço minha parte... - e o maior dos arcanjos sorriu para Malkizid, ainda um rapazote naquele princípio dos tempos. Malkizid via a beleza de Zaphkiel, que reverberava impressionista diante de tamanha humildade. Todos o admiravam sem exceção, até mesmo Khabriel, o arcanjo das vitórias, campeão do bem a qualquer preço, amigo do caos, com quem tinha discordâncias.
O jovem Malkizid era um mensageiro. Era ele quem levava as sábias palavras de Zaphkiel aos aliados e campeões do bem. Visitava deuses e entidades planares, santos e mortais. Viajava pelas diferentes camadas da existência e muito cedo entendeu as curvas sinuosas da elíptica serpente. Era a ele quem cabia dar beleza alegórica às decisões ponderadas do líder dos Sete Céus. Malkizid via muita beleza em seu ofício e buscava sempre o signo certo para qualquer que fosse a sintaxe necessária à semântica designada.
Conhecer tantos seres tão vastos e diversos aos poucos ampliou as perspectivas do jovem anjo para além da luz dos Sete Céus. Ele viu que os mais poderosos entre os seres, os mortais, o alicerce de tudo, os pontos nodais sem cuja fé e experiência nada haveria, perdiam-se em devaneios e mesquinharias manipulados por aqueles que deviam servi-los. Malkizid logo percebeu que os auto-proclamados deuses viviam perdidos em disputas e picuinhas, usando seus seguidores apenas a seu bel prazer, sem verdadeiramente representar algo de bom em suas vidas.
É claro que haviam algumas exceções. Mas não passavam disso, exceções. Além do sol eterno dos Sete Céus, tudo carregava alguma cicatriz do mal. Fora dos limites do Paraíso tudo acabava por afastar-se do bem.
A embaixada mais marcante daquele mensageiro foi quando pela primeira vez visitou os Seldarine, deuses do belo povo. Malkizid foi ter com Corellon Larethian, que o recebeu com boa música e honrarias sem igual. 
- É um privilégio de poucos receber o mensageiro do Deus Uno, ó Malkizid, artesão das palavras - disse Corellon olhando-o fundo nos olhos e pousando a mão em seu ombro. O senhor dos elfos era alto e esguio. Sua pele dourada como seus cabelos compridos apenas seguros pela coroa de folhas e ramos. Se tivesse asas seria como um dos eladrins, os celestiais ligados à natureza, maiores aliados dos Sete Céus. Malkizid se enamorara de uma eladrin de pele escura como ele, mas muito livre ela pra se prender a ele recusou a corte.
A pele resplandecente contrastava com a pele cinzenta de Malkizid.
- Zaphkiel não é um deus, Senhor do belo povo. Ele é apenas mais um operário, apenas mais um fiel e devoto defensor da criação, do bem e da ordem. Mas é um privilégio ser recebido em seu reino, entre tão belos deuses de um tão belo povo - disse o mensageiro se curvando humildemente.
- Não seja tolo, jovem anjo. Ninguém aqui se ajoelha perante mim e não o fará você. Há boa comida e bebida, além de música e festa para recebê-lo - disse Corellon Larethian levantando-o. Foi nesse momento que o olhar de Malkizid encontrou pela primeira vez a maior dentre todas as belezas: Araunshee, a deusa élfica de carne preta e Senhora da Paixão. Os olhos dela o convidaram. Lolth, foi como ela lhe pediu que a chamasse, quando estiveram sozinhos após a festa pela primeira vez. Ele tocou a pele escura dela, que tremia levemente, nada mais fazia sentido e era isso que importava.
- Será meu fim! - Ela disse baixando os olhos.

Malkizid viera para alertar ao Senhor dos elfos que entre seu belo povo haviam alguns desencaminhados que flertavam e se arriscavam em alianças satânicas com os diabos dos Nove Infernos e os demônios do Abismo. Os seres cuja existência representava o âmago do mal disseminavam a corrupção e as vilanias que os alimentavam entre os elfos e até mesmo entre seus deuses. Depois da recepção e de transmitida a mensagem como devido, Corellon Larethian desejou enviar também um embaixador aos Sete Céus, que cuidaria de colocar os Seldarine e seu povo como aliados eternos do bem. Houve uma estranha disputa entre os sucessores de Corellon e foi o jovem Vhaeraun quem tomou a incumbência, após a áspera discussão entre Corellon e seu primogênito Solonor.
Disposto a defender a beleza de seu amor, o mensageiro dos Sete Céus rumou para o Abismo com Vhaeraun, onde se reuniu a Lolth. Ele esteve diante dos Lordes Abissais pela primeira vez. O maior ali presente era Graz'zt, lorde dos ardis, representante das tramoias, esquemas, manipulações e afins. Foi ele quem rapidamente mostrou a Malkizid que não havia ali qualquer mal imanente, uma vez que ele mesmo, um ser teoricamente de pura bondade podia mudar de lado sem que deixasse de ser o que sempre fora, um mensageiro entre os dois extremos. Um outsider em todos os sentidos do termo. Ele podia ter a deusa que o completava sem se submeter a determinismos apriorísticos:
- Você, Malkizid, Senhor das Palavras, podes ser dono de suas próprias palavras e de sua história!
Para além de apenas admirar a beleza, Malkizid aprendeu a deixar-se invadir por ela. Ele uniu-se a Lolth, fez nela o filho profano que alimentou seu poder e tornou-se seu campeão na investida contra Corellon Larethian. Tem certeza que teriam conseguido matá-lo e tomado para si o belo povo, não fosse a intervenção de filhas, mulheres e mães, naquelas guerras que eram também guerras entre os elfos, as Guerras das Coroas como eram chamadas. As três deusas que se fizeram uma, Angahard, a Senhora de Tudo, salvou Corellon. Ela salvou seu primeiro filho e o primeiro marido, o pai, que ainda chorava pelo primogênito Solomor, assim como todos, também filho dela, como a própria Araunshee. Juntos, as duas divindades expulsaram Lolth para as trevas, incapazes que eram, no fim, de cortar a própria carne, também ela mãe, esposa e filha. O castigo de Malkizid foi outro. Ele ia tornar-se o que verdadeiramente representava agora, uma chaga na história dos Sete Céus.
O anjo viu suas belas mãos crescerem como garras monstruosas. Depois seu pés. Um longo rabo de serpente cresceu. Seu corpo cinzento foi recoberto de feridas em carne viva.
- Esse é o preço por sua traição, tolo anjo... - disse Corellon erguendo sua espada longa para executá-lo.
- Mas ele não passa de um tolo... não foi ele quem matou nosso filho, não foi ele quem tramou tudo isso, meu filho. O castigo que lhe cabe não é deixar de existir, mas sentir o peso de seus crimes! - Proclamou Angahard, cujos olhos deixavam correr as lágrimas sofridas de uma mãe que já perdera filhos demais em uma guerra sem fim.
- Devolvê-lo ao Abismo não é uma justa punição. Eu irei enviá-lo para Zaphkiel! - Gritou Corellon chutando o anjo ainda entorpecido pela dor das feridas e pelos chifres que cresciam em sua testa.
- Não! Ele irá para o Inferno. Um anjo aliado dos demônios nos reinos dos diabos. Esse será seu castigo!!! Longe de sua amada vil!!! - Gritou a deusa.
Quando Malkizid recobrou o sentido, já estava sendo torturado e aprisionado pelos servos de Asmodeus nos Nove Infernos. Mas ele provou que podia ser útil. Logo se tornara um general entre aqueles malditos e malignos seres. Provou que seu conhecimento do bem, lapidara como nada a maldade capaz de expressar. Enquanto foi útil a Asmodeus, criou seu feudo de poder e informações. Dizem que chegou a batalhar contra os exércitos do Céu certa vez, que teria batalhado contra o o próprio Khabriel. Fato é que em algum momento, ele deixou de ser útil para ser uma ameaça aos olhos do Senhor dos Nove Infernos.
Foi Asmodeus quem aprisionou Malkizid no limite do caos absoluto. Dessa prisão, ele só poderia quando findasse a existência. Além do alcance de toda e qualquer força pelo tempo de uma eternidade. Enquanto Dendar tivesse escamas e não devorasse a própria cauda, ele estaria confinado sozinho lembrando-se de tudo.
Ele recontou para si mesmo sua história por seiscentas e sessenta e seis vezes até que algo surgisse no nada para libertá-lo daquela loucura de não existir. Não que houvesse algo ali, pois no limite do caos que estavam nada podia ser.
- Onde estou?
- No limite do caos absoluto... o não lugar além da existência, onde nada é!
- Quem é você?
- Eu sou Malkizid. Como você, chave dos planos, eu fui traído e amaldiçoado.
- Eu... eu fui.. fui morto... meu espírito destruído quando tentava voltar... mas nada disso faz sentido... como pode haver um não lugar fora da existência?
- Eu tenho uma resposta mais interessante para você. Eu conheci certa vez uma entidade que assim como você era uma Chave dos Planos. Se você se unir a mim, posso ajudá-lo a sair daqui!
Foram preciso poucos argumentos mais para convencer o bárbaro conhecido como Rock dos Lobos a usar seus poderes planares e devolver os dois para o fluxo da existência. Malkizid retornou ao Abismo, enquanto Rock tornou-se seu arauto e, depois, seu escolhido.
Malkizid derrotou os lordes abissais um a um e em pouco tempo conseguiu o inimaginável até então. Ele unificou as hordas sem fim do Abismo sob um único governo. Uma ameaça que nem os Sete Céus e os Nove Infernos juntos poderiam derrotar.
Malkizid se reuniu a Lolth mais uma vez e ajudou-a a sacrificar seus filhos, reunindo poder para tomar aquele mundo. No caminho deles agora só restava uma infanta deusa dos elfos, já que as outras divindades regressaram ao mundo desmorto que haviam abandonado um dia. Enquanto Lolth cuidava de esmagar as resistências ao avanço de seus mortos-vivos e clérigas, ele rumou para Evereska, onde encontraria a entidade Daphne da Grande Floresta. Eles a haviam amaldiçoado graças ao cadáver de alguém que era sangue do seu sangue. Isso estava ceifando a vida dela, mas seus aliados mortais a levaram para a capital de Bibiana Cromiel para salvar a serva do equilíbrio.
Sem o dragão planar Imvaernarho para protegê-la, preso nas teias demoníacas do plano de Lolth, ela seria o sacrifício capaz de entregar-lhes o âmago daquele mundo, um sacrifício à altura de alçar-lhes a dominadores da existência. Suas garras repousariam no pescoço da própria Dendar.


No entanto, quando chegou com alguns poucos demônios, o Senhor do Abismo encontrou muito mais resistência do que esperava. O guardião Ehtur Telcontar lá estava com sua épica lança Gungnir, que matara deuses e demilichs. Mesmo perdendo algum tempo para garantir a segurança de sua valente esposa Alissah Telcontar e do filho que ela carregava no ventre, enquanto ela invocava feitiços, ele contava com o apoio de muitos valentes gnomos. O bardo Yorgoi Dossantis era quem inspirava os camaradas a perseverar. Sua esposa Deborah Pompeios também rezava para engrandecê-los diante do mal. Úrsula Swarzineguer derramava setas protegida pelo seu esposa Arnoux, reencarnado no corpo de orc. A clériga Daphne invoca as forças que sua mestra Daphne lhe ensinara para combater aquela entidade do mal.
Mesmo matando os milhares de elfos que estavam em Evereska, estes haviam trago de volta o escolhido de Bibiana, John Falkiner. Além do milagre de Jacke para levantar Daphne e o surgimento do escolhido de Selune Sirius Black, a força do mythal da cidade também representou um empecilho. Ainda assim, Malkizid conseguiu conectar aquela lugar ao Abismo, profanando-o para sempre e criando uma cicatriz profunda entre aquelas realidades.
Os esforços eram vão, já que a força do mythal seguia abastecendo a essência do anjo caído. Todos os ataques pareciam ínfimos e as magias não o perturbavam. Tudo parecia caminhar para o fim, mas Alissah sabia que algo podia ser feito. A fada conjurou seus poderes de dríade de regressar ao sagrado carvalho que era seu corpo verdadeiro, a forma de seu espírito. Antes, no entanto, ela tocou o poderoso mythal de Evereska e o levou com ela.
Percebendo a chance, Ehtur Telcontar, engrandecido por todo o poder de seus amigos, saltasse em sua mais mortal carga, empunhando Gungnir com a determinação de salvar não o mundo, ou aquela cidade, ou os infinitos universos. Ehtur Telcontar saltou para salvar sua família. A lança épica atravessou Malkizid lembrando que eram os mortais, no fim das contas, os mais poderosos de todos os seres da existência. Seu corpo ainda tremeu preso à terra pela lança e atravessado pelo braço do guardião, enquanto ele engasgou com seu sangue e riu antes de explodir numa hecatombe de fogo e mal.